domingo, 10 de abril de 2011

Evanildo Bechara: 'Sendo que' e uma crítica infundada

Rio - A sequência ‘sendo que’, em construções do tipo “Eram três os vizinhos, sendo que um deles acaba de mudar-se para Minas”, é tão natural ao nosso saber idiomático, que dificilmente imaginaríamos vê-la apontada como errada ou, no mínimo, como construção que deve ser evitada por desnecessária.

Realmente, a construção aparece repetida e condenada em consultórios gramaticais, dicionários de dúvidas de linguagem e manuais de redação, quando a sequência é usada como equivalente à conjunção aditiva ‘e’ ou à adversativa ‘mas’. A crítica chega a considerá-la tão pobre de força expressiva, que recomenda a sua supressão ou, se se considera imprescindível à ideia, que seja na oração substituída por um gerúndio ou particípio do verbo ou, ainda, por um pronome relativo ou conjunção subordinativa. Não falta quem a considere agramatical, isto é, contrária à estrutura do idioma.

Não conhecemos a fonte de onde se originou essa lição condenatória que não tem o respaldo de quem conhece profundamente a história da língua portuguesa, história que se reflete no uso de seus melhores escritores. No emprego de ‘sendo que’ não temos erro de língua, nem, tampouco, uma sintaxe agramatical. Por questão pessoal de estilo ou por possível necessidade de clareza do contexto, pode-se substituir ‘sendo que’ pelas alternativas propostas. Essa larga possibilidade de substitutos se deve ao fato de as chamadas orações reduzidas de infinitivo, de gerúndio e de particípio terem elasticidade semântica para cobrir as equivalências expressionais de que falamos.

A história da língua, entretanto, nos esclarece a origem de ‘sendo que’, na lição de um excelente representante da nossa gramaticografia, Augusto Epifânio da Silva Dias (1841-1916): “- Obs. 3ª. Um simples particípio absoluto substitui-se enfaticamente por uma oração de ‘que’ ligada como sujeito ao particípio ‘sendo’: Estava no mundo e sendo que o mundo foi feito por ele, não o conheceu o mundo (Vieira, II, 1901) (Sintaxe Histórica Portuguesa, § 316, b), págs. 242-243 da 2ª ed., Lisboa, 1933). Segundo a lição de Epifânio, a construção nasceu para dar ênfase à sintaxe com particípio, particípio que hoje se recomenda para substituir a fórmula considerada expressivamente fraca ‘sendo que’.

Os estudos históricos de nossa língua estão ainda muito aquém do desejado. Mas, pelo testemunho de Vieira, podemos pensar que a novidade da construção se deu entre os séculos XVI e XVII, e pela documentação a seguir continua viva nos nossos dias.

A ênfase conseguida em ‘sendo que’ é análoga à conseguida com a formula ‘é que’, tão nossa conhecida. Cabe ainda acrescentar que os críticos do ‘sendo que’ o consideram “inútil”, por dispensável. Mas, se não estamos em erro, a sequência continua imprimindo ao contexto a ênfase pela qual Epifânio explicou sua origem. Estará mesmo certo dizer que um exemplo como “Os autores concordam com essa teoria e os nacionais são ainda mais enfáticos” é mais clara e traz mais ênfase ao estilo do que “Os autores concordam com essa teoria, sendo que os nacionais são ainda mais enfáticos”? Para nós, é infundada a correção gramatical e estilística pretendida, conforme se vê no testemunho de nossos melhores escritores:

VIEIRA, Pe. Antônio. ‘Sermões’ (p. 185): “Andais buscando a honra com olhos de Lince; e sendo que para verdadeira honra não há mais que uma porta (que é a virtude) ninguém atina com a porta”.

ASSIS, Machado de. ‘Ressurreição’ (p. 92): “Lívia tinha alternativas de afabilidade e rispidez, ao passo que o irmão era de uma inalterável paz de espírito. Viana tinha cousas más e boas, sendo que as cousas boas eram justamente as que se opunham ao gênio especulativo da viúva".

ANDRADE, Mário de. ‘Namoros com a Medicina’ (p. 76): “Ainda a ferida oriunda de dentada de gente se cura entre nós com titica de galinha, sendo que além da cura, o remédio mágico derruba os dentes de quem mordeu".
Evanildo Bechara é professor da Uerj e da UFF e membro da ABL