terça-feira, 17 de agosto de 2010

Modernismo - 2ª fase - Cecília Meireles - biografia

Cecília Meireles

"Cecília levita, como um puro espírito...Por isso ela se move, "viaja", sonha com navios, com nuvens, com coisas errantes e etéreas, móveis e espectrais, transformando em pura poesia essa caminhada. Uma das excepcionalidades de Cecília Meireles: a composição de uma poesia densamente feminina, não apenas a poesia feita por alguém que é mulher, mas obra de mulher, de um sem número de perspectivas sobre as coisas que os homens não teriam, poesia na qual uma das grandes forças é a delicadeza, e delicadeza de poeta, que transfigura a vida em canto..." Ana Cristina Cesar

"Nasci no Rio de Janeiro, três meses depois da morte do meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas ao mesmo tempo me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno. Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento da minha personalidade.Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde, foi nessa área que os livros se abriram e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano sem fundo.” Cecília Meireles.

Cecília Meireles nasceu no Rio, em 7 de novembro de 1901, mesma cidade em que morreu, a 9 de novembro de 1964. A menina foi criada pela avó materna, Jacinta Garcia Benevides.
A paixão pelos livros e a leitura norteia o caminho da jovem Cecília. Aos 16 anos, ela se diploma professora. A vontade e o fascínio pelo "saber" a conduzem, então, para o estudo de outros idiomas e para o Conservatório Nacional de Música, onde tem aulas de canto e violino. Ainda que "fizesse versos" e compusesse cantigas para os seus brinquedos desde a escola primária, é na adolescência que Cecília Meireles começa a "escrever poesias", segundo sua própria definição. Em 1919, aos 18 anos, ela publica seu primeiro livro de poemas: ESPECTROS, iniciando um período de grande produção.
Três anos mais tarde, casa-se com o artista plástico português Fernando Correa Dias. Ele seria o ilustrador de futuras obras da poeta e pai de suas três filhas, três Marias: Elvira, Matilde e Fernanda. Um ano depois do casamento, Cecília Meireles publica NUNCA MAIS...E POEMA DOS POEMAS, com ilustrações de Correa Dias. Em 25, o terceiro livro, BALADAS PARA EL-REI. As três obras, apesar de excluídas de sua Obra Poética, publicada em 1958, apontam traços marcantes de toda a produção Ceciliana. Tematicamente, em destaque, o misticismo: Em NUNCA MAIS...E POEMA DOS POEMAS, manifestado através do desejo da união da alma humana com Deus.
Em BALADAS PARA EL-REI, através do desencanto e da nostalgia do além. Formalmente, os poemas constroem-se através da repetição de palavras, vogais e consoantes, refletindo, os versos, uma particular musicalidade. Segundo críticos de sua obra, Cecília Meireles, associando uma percepção sensorial a outra, produz sinestesias transfiguradoras da realidade, anunciando o nível de sua futura produção.
A partir de 1925, a educadora Cecília Meireles se sobressai à poeta. Em 1927, ela publica a prosa poética CRIANÇA, MEU AMOR, livro que posteriormente seria indicado como leitura oficial nas escolas. Dois anos depois, ela se candidata à cátedra de literatura da Escola Normal, mas o cargo, de acordo com as cabeças pensantes, destinava-se a alguém reconhecidamente católico. Cecília concorre à vaga com a tese O ESPÍRITO VITORIOSO, um trabalho liberal onde discorria sobre a liberdade individual na sociedade. Perde para um técnico em educação sem qualquer pretensão literária, perfil que agradava mais aos "eleitores" da vaga a que Cecília Meireles concorria. A despeito de perseguições mais ou menos veladas, e de dificuldades financeiras, Cecília Meireles luta ainda mais pela renovação educacional vigente. Entre junho de 1930 e janeiro de 33, dirige a Página da Educação no Diário de Notícias do Rio de Janeiro. Em seus artigos sobre política, educação e cultura, defende uma política menos casuísta e uma educação moderna. Cecília rompe tabus de uma sociedade, deixando sua marca na História Brasileira como defensora da idéia universal de democracia, numa década em que o mundo vive o período de transição das duas Grandes Guerras. No Brasil, Vargas sai-se vitorioso na Revolução de 30.

Página de Educação, Diário de Notícias, 6 de maio, 1931. Fragmento: "Mas, enquanto uma reforma do Ensino Primário, como a que nos deixou o governo findo, nos promete - embora da sombra e da frialdade a que a condenaram - uma era nova, e de real importância, para a nossa nacionalidade, o regime atual, que tanto tem invocado a Liberdade como sua padroeira, nos coloca nas velhas situações de rotina, de cativeiro e de atraso que aos olhos atônitos do mundo proclamarão, só por si, o formidável fracasso da nossa revolução... Veio o sr. Francisco Campos com o seu feixe de reformas na mão. E, em cada feixe, pontudos espinhos de taxas... E esperávamos uma reforma de finalidades, de ideologia, de democratização máxima do ensino, da escola única - todas essas coisas que a gente precisa conhecer antes de ser ministro da educação...Depois veio o decretozinho do ensino religioso. Um decretozinho provinciano, para agradar alguns curas, e atrair algumas ovelhas...decreto em que fermentam os mais nocivos efeitos para a nossa pátria e para a humanidade. Chama-se a isto ser liberal. Fala-se da religião como de um movimento de liberdade. Liberdade! Oh! mas, afinal, sejamos coerentes. Façamos o déspota. Façamos o vizir. Façamos, de certo modo, o César do século 20. Mas conservemos a significação dos nomes!"
Cecília Meireles


A "Página da Educação", comandada por Cecília Meireles, causa fúria no meio político nacional. Cecília refere-se ao presidente Vargas como "Sr. Ditador". Sustentando a idéia de um Brasil menos ufanista, coleciona inimigos e desafetos. Entre eles Alceu Amoroso Lima, crítico católico que, em 71, reconheceria na poeta "uma grande figura feminina do modernismo". Os modernistas, aliás, já a consideravam uma revelação, a partir da publicação de ESPECTROS e BALADAS PARA EL-REI. Em janeiro de 33, Cecília Meireles encerra seu trabalho frente à Página da Educação. Cansada da perseguição que sofria, manifesta, em correspondência, seu "horror" ao jornalismo. No entanto, ela troca o Diário de Notícias pelo jornal A Nação, contratada sob a condição de não escrever sobre política. Em 34, com o marido, inaugura o Centro de Cultura Infantil do Pavilhão do Mourisco, no Rio. É a primeira biblioteca infantil do país. A convite do governo português, Cecília Meireles dá início a um período de viagens ao exterior. Em Lisboa e Coimbra difunde a cultura, literatura e o folclore brasileiros, em uma série de conferências. Em 1935, ao retornar ao país, novo período de sofrimento não demora a surgir, com o suicídio do marido. Responsável pela educação das três filhas, Cecília Meireles amplia suas atividades profissionais. Volta a lecionar; escreve sobre folclore no jornal A Manhã, crônicas para o Correio Paulista e dirige a Revista Travel in Brazil, no Rio. Além disso, mantém sua atividade no Pavilhão Mourisco.
A Biblioteca Infantil, mais do que um sonho de Cecília Meireles embalado desde a infância, é um sucesso no Rio de Janeiro até 37, quando o Interventor do Distrito Federal invade o Centro e apreende AS AVENTURAS DE TOM SAWYER, de MARK TWAIN, um clássico norte-americano, sob acusação de comunismo. O caso repercute no Brasil e no exterior. Depois da invasão, o Centro de Cultura Infantil é fechado pelo Estado Novo. O ano de 38 marcará seu retorno à poesia. O livro VIAGEM, publicado no ano seguinte (1939), recebe da Academia Brasileira de Letras o Prêmio de Poesia. O reconhecimento se faz presente. VIAGEM é composto por doze poemas, que podem ser interpretados como doze etapas de uma trajetória espiritual, onde vida e poesia se confundem, da mesma maneira que a poeta e a natureza. Formalmente, convivem lado a lado versos de sete e oito sílabas e versos livres.
Reconhecida oficialmente, a partir do lançamento de VIAGEM, em 39, Cecília Meireles inicia um novo período de produção intelectual e de afetividade. Casa-se, em 1940, com Heitor Grillo, passa a lecionar literatura e Cultura Brasileira na Universidade do Texas, profere conferências no México e visita a Argentina, Uruguai e diversos países europeus. Até o final dos anos 40, produz intensamente. Em 42, publica VAGA MÚSICA, onde pergunta, em um poema: COISA QUE PASSA, COMO É TEU NOME? Três anos depois, publica MAR ABSOLUTO e, em 49, RETRATO NATURAL, transmitindo sua busca e perplexidade diante do enigma da existência humana.
Quando lançado, RETRATO NATURAL foi assim recebido pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, que assinava coluna no Jornal de Letras do Rio de Janeiro: "Uma espécie de retrato natural da fisionomia da sra. Cecília Meireles, e que a situa definitivamente na corrente tradicional dos poetas peninsulares... Com a sra. Cecília Meireles, o verso português não sofre nenhuma distorção violenta. Apenas ficou mais fluido, adquiriu uma diferente e surda musicalidade. Bem a qualificou outro grande poeta, João Cabral de Melo Neto: libérrima e exata."
Na década de 50, Cecília Meireles intensifica as viagens para o exterior. Reconhecida, vive a plenitude, num período caracterizado pela felicidade e satisfação profissional. Em 51, participa do I Congresso Nacional do Folclore, no Rio Grande do Sul. Na infância, Cecília Meireles tomara contato com o folclore açoriano através da avó. A cultura popular fora-lhe transmitida através de uma pajem, que lhe contava histórias, contos, adivinhações e fábulas. O interesse pela cultura popular brasileira, que já havia levado a poeta e educadora para além das fronteiras nacionais, acaba por levá-la mais longe nos anos 50. Ainda em 51, após o lançamento de AMOR EM LEONORETA, viaja aos Açores, França, Bélgica e Holanda. No período, escreve DOZE NOTURNOS DE HOLANDA. O termo "noturno" tem conotação com os mistérios da noite, e também tem relação com a composição musical, melancólica e terna. A obra, composta por 12 noturnos, traduz a busca de Cecília, sua angustiada tentativa de penetrar a razão da existência humana. A crítica afirma que, em sentido figurado, "a idéia da noite percorre os doze poemas, como um sinônimo de questionamento do sentido da vida, da oportunidade de purificação ou da imagem da morte".
Os Doze Noturnos de Holanda foram publicados em 52, mesmo ano do lançamento de O AERONAUTA, período em que a poeta encerra a pesquisa que resultará no ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA, uma narrativa rimada, na definição da autora, que lhe consumiu dez anos de pesquisa. A temática, de caráter histórico e nacionalista, remete o leitor à Inconfidência Mineira. A poeta associa a verdade histórica com tradições e lendas e, ao utilizar-se da técnica ibérica dos romances populares, recria a atmosfera de Ouro Preto, Vila Rica dos Inconfidentes. Na obra aparecem, alternados, os "romances", os "cenários" e as "falas".
No mesmo ano em que o Romanceiro é publicado, Cecília Meireles recebe o título de Doutor honoris causa da Universidade de Délhi, na Índia. Ela havia sido convidada pelo governo indiano a participar de um simpósio sobre a obra de Gandhi. O trabalho lhe rendeu o título concedido. Cecília, que desde a adolescência vivia o fascínio pela cultura oriental, extravasa a experiência vivida em sua poesia. Da viagem nascem os POEMAS ESCRITOS NA ÍNDIA, parte das crônicas-evocação que irão compor GIROFLÊ-GIROFLÁ, e a ELEGIA A GANDHI, hoje traduzida para inúmeras línguas. Antes de voltar ao Brasil, uma passagem pela Itália. Surgem os POEMAS ITALIANOS. Seguem-se, ainda, viagens a Porto Rico e Israel.

Giroflê-Giroflá
Tempo do Giroflê
A vida vai sendo levada para longe, como um livro, que tristes querubins contemplam, resignados. (...) Ah, mas as pálidas imagens ainda resistem: saem dos seus primitivos lugares, aparecem onde não as esperávamos, desdobram-se de outras figuras que nos apresentam, acordam as primeiras experiências, as indeléveis curiosidades do nosso amanhecer no mundo. (...) A bondade está ali - detrás daquela porta que se abre em silêncio, na sala onde a mesa está sempre posta - Inutilmente o relógio marca o dia e a noite, pois a vida é sem fim. Ninguém estremece. Ninguém pensa nas horas muito a sério. Todos se sucedem, todos se lembram uns dos outros. Todos estão ali à espera dos que chegam.(...)

Giroflê, Giroflá foi publicado, em edição limitada, em 56 e reeditado em 1981. O livro, composto por crônicas, em prosa poética, reúne as impressões de Meireles recolhidas em suas viagens pela Índia e Itália. De volta ao Brasil, depois de passar por Porto Rico e Israel, em 58, Cecília Meireles acompanha a publicação da sua OBRA POÉTICA, que consistiu no reconhecimento do mercado editorial do seu valor e talento literário e artístico. Até 64, a poeta lançaria, ainda, METAL ROSICLER e SOLOMBRA, em 60 e 63.
Cecília Meireles morre no Rio, em 9 de novembro de 1964. Em plena atividade literária, deixando incompleto um poema épico-lírico, escrito em comemoração ao quarto centenário do Rio de Janeiro, sua cidade Natal. Além deste poema, deixa inúmeros textos inéditos. No ano seguinte à sua morte, a Academia Brasileira de Letras concede-lhe o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da obra. Amada pelo público - até hoje, Cecília Meireles é a poeta mais lida do Brasil, sendo ultrapassada apenas por Vinícius de Morais e Carlos Drummond de Andrade -, Cecília Meireles permanece um desafio para a crítica nacional. Ela partiu do pós-simbolismo e do lirismo português. À margem do modernismo, construiu uma obra de dicção muito pessoal, que a faz admirada não apenas pelo público, mas também por colegas, como Drummond, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. E alcançou uma meta: "acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante."
O crítico e ensaísta Davi Arrigucci Jr. afirma que ela era uma poeta altamente técnica, uma grande artista do verso, que deixou expressa em sua obra a tensão entre o sentimento do fugidio e rigor que ela própria se impunha para expressar esse sentimento. Arrigucci prossegue: "extremamente musical, com metáforas fortemente sensoriais e sua insistência no uso da primeira pessoa, Cecília Meireles parece ter cantado sempre o mesmo tema:"a busca do eterno no transitório, do transcendente no contingente, do milênio no minuto".



Obras da autora (Poesias)
Espectros (1919); Nunca mais... e poema dos poemas (1923); Baladas para el-rei (1925); Viagem (1939); Vaga música (1942); Mar absoluto (1945); Outros poemas (1945); Retrato natural (1949); Amor em Leonoreta (1951); Doze noturnos da Holanda (1952); O aeronauta (1952); Romanceiro da Inconfidência (1953); Pequeno oratório de Santa Clara (1955); Pistóia, cemitério brasileiro (1955); Canções (1956); Romance de Santa Cecília (1957); A rosa (1957); Obra poética (1958); Metal rosicler (1960); Poemas escritos na Índia (1962); Solombra (1963); Ou isto ou aquilo (1964); Crônica trovada da cidade de Sam Sebastiam do Rio de Janeiro no quarto centenário de sua fundação pelo capitão-mor Estácio de Saa (1965); Poemas italianos (1968); Poemas inéditos (1969); Cânticos, poesias inéditas (1981).

Bibliografia
BERALDO, Alda. Trabalhando com poesia. São Paulo: Ática, 1996.
LAMEGO, Valéria. A Farpa na lira. Cecília Meireles na revolução de 30. Rio de Janeiro: Record, 1996.
GOLDSTEIN, Norma. Análise do Poema. São Paulo: Ática, 1986 ( Ponto por Ponto).
ZILBERMAN, R.. A Leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 1989.

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