sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Ana Cristina Cesar - poesia anos 70

"olho muito tempo o corpo de um poema"

Ana Cristina Cesar





olho muito tempo o corpo de um poema

até perder de vista o que não seja corpo

e sentir separado dentre os dentes

um filete de sangue

nas gengivas


Ana Cristina Cesar, ou Ana C., como era conhecida, nasceu em 1952 nesta cidade do Rio de Janeiro. Após 1968, passou um ano em Londres, fez algumas viagens pelos arredores e, na volta, deu aulas, traduziu, fez letras, escreveu para revistas e jornais alternativos, e saiu na antologia "26 Poetas Hoje", de Heloísa Buarque. Publicou, pela Funarte, pesquisa sobre literatura e cinema, fez mestrado em comunicação, lançou seus primeiros livros em edições independentes: "Cenas de Abril" e "Correspondência Completa". Dez anos depois voltou à Inglaterra, graduou-se em tradução literária, escreveu muitas cartas e editou "Luvas de Pelica". Trabalhou em jornalismo, televisão e escreveu "A Teus Pés", Editora Ática - São Paulo, 1998. Suicidou-se no dia 29 de outubro de 1983.

O poema acima foi incluído no livro "Os cem melhores poemas brasileiros do século", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2001, pág. 249, seleção de Ítalo Moriconi, que assim se manifestou sobre a escritora: "Ana Cristina dizia que uma das facetas do seu desbunde fora abandonar a idéia de ser escritora, livrar-se do que ela naquele momento julgava ser sua face herdada, o estigma princesa bem-comportada, alguém marcada para escrever".


Flores do Mais

devagar escreva

uma primeira letra

escrava

nas imediações construídas

pelos furacões;

devagar meça

a primeira pássara

bisonha que

riscar

o pano de boca

aberto

sobre os vendavais;

devagar imponha

o pulso

que melhor

souber sangrar

sobre a faca

das marés;

devagar imprima

o primeiro

olhar

sobre o galope molhado

dos animais; devagar

peça mais

e mais e

mais

Deus na Antecâmera

Mereço(merecemos, meretrizes)

Perdão(perdoai-nos, patres conscripti)

Socorro (correi, valei-nos, santos perdidos)



Eu quero me livrar desta poesia infecta

beijar mãos sem elos sem tinturas

consciências soltas pelos ventos

desatando o culto das antecedências

sem medo de dedos de dados de dúvidas

em prontidão sangüinária



(sangue e amor se aconchegando

horas atrás de hora)



Eu quero pensar ao apalpar

eu quero dizer ao conviver

eu quero parir ao repartir



Filho

Pai



E

Fogo

DE-LI-BE-RA-MEN-TE

abertos ao tudo inteiro

maiores que o todo nosso

em nós(com a gente) se dando



HOMEM: ACORDA!





Fagulha



Abri curiosa

o céu.

Assim, afastando de leve as cortinas.



Eu queria entrar,

coração ante coração,

inteiriça

ou pelo menos mover-me um pouco,

com aquela parcimônia que caracterizava

as agitações me chamando



Eu queria até mesmo

saber ver,

e num movimento redondo

como as ondas

que me circundavam, invisíveis,

abraçar com as retinas

cada pedacinho de matéria viva.



Eu queria

(só)

perceber o invislumbrável

no levíssimo que sobrevoava.



Eu queria

apanhar uma braçada

do infinito em luz que a mim se misturava.



Eu queria

captar o impercebido

nos momentos mínimos do espaço

nu e cheio



Eu queria

ao menos manter descerradas as cortinas

na impossibilidade de tangê-las



Eu não sabia

que virar pelo avesso

era uma experiência mortal.

Protuberância

Este sorriso que muitos chamam de boca

É antes um chafariz, uma coisa louca

Sou amativa antes de tudo

Embora o mundo me condene

Devo falar em nariz(as pontas rimam por dentro)

Se nos determos amanhã

Pelo menos não haverá necessidades frugais nos espreitando

Quem me emprestar seu peito ma madrugada

E me consolar, talvez tal vez me ensine um assobio

Não sei se me querem, escondo-me sem impasses

E repitamos a amadora sou

Armadora decerto atrás das portas

Não abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me detém

É sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos

O círculo se abre em circunferências concêntricas que se

Fecham sobre si mesmas

No ano 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma rainha

Rainha de quem, quê, não importa

E se eu morrer antes disso

Não verei a lua mais de perto

Talvez me irrite pisar no impisável

E a morte deve ser muito mais gostosa

Recheada com marchemélou

Uma lâmpada queimada me contempla

Eu dentro do templo chuto o tempo

Um palavra me delineia

VORAZ

E em breve a sombra se dilui,

Se perde o anjo.

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