quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Ritos de passagem 1

REVISTA PLANETA - EDIÇÃO 404 - ABRIL /2006 - CAPA

RITOS DE PASSAGEM:
Como é difícil virar adulto:
Parece que a cada dia fica mais difícil abandonar a infância e a adolescência e tornar-se adulto. Tão difícil que muitos jovens esticam a adolescência até os 30, 40 anos de idade, com medo de sair do confortável ninho da casa dos pais para cair num mundo duro de enfrentar. Uma passagem realmente difícil, mas que se tornou ainda mais difícil com o desaparecimento dos ritos que exigiam grandes provações e garantiam uma transição firme e segura.

POR MARIA IGNEZ TEIXEIRA FRANÇA



Nova identidade: No Alto Xingu, um jovem da etnia yawalapiti se submete a ritual de passagem onde sua pele é arranhada até sangrar com o uso de dentes de peixe.

Para diminuir o estresse dos alunos que mudam de série, algumas escolas particulares da cidade de São Paulo começaram a adotar algumas medidas que chamaram de “ritos de passagem”. Na verdade, são alguns truques que ajudam os alunos num período de mudanças e transformações. Assim, para quem irá passar de uma escola pequena para um grande prédio, são oferecidas uma série de visitas, especialmente na hora do recreio, que antecipam a convivência com os futuros colegas mais velhos. Ou então, para quem está acostumado com todas as matérias dadas por um só professor, a idéia é introduzir mais um ou dois professores no final do semestre, evitando assim o “choque” de ter um professor para cada matéria. Essas e outras medidas, no entanto, não aliviarão o inevitável aumento de responsabilidades, assim como não amenizarão a descoberta de como é dura a vida. Mesmo assim, adolescentes e pré-adolescentes terão de enfrentar sozinhos, dali em diante, um mundo onde imperam a competição, a concorrência e as batalhas árduas para conquistar espaço no trabalho, na sociedade, na vida amorosa e até em família.



Tatuar-se corresponde à busca inconsciente de uma nova identidade


A necessidade de estabelecer mecanismos que ajudem a passagem da infância para a adolescência, e desta para a idade adulta, é tão velha quanto a existência do homem na Terra. Culturas de todo o mundo têm adotado, ao longo dos séculos, aquilo que os antropólogos chamam de “ritos de passagem”: rituais que acompanham as mudanças de lugar, idade, estado e posição na sociedade, de modo a reduzir as perturbações nocivas que tais mudanças podem ocasionar. Entre as centenas de exemplos, um dos mais intrigantes é o de uma cidade lacustre do Benin, onde os jovens mergulham no fundo do lago e dali só saem (dizem) depois de seis meses, com uma lágrima escarificada no canto de cada olho. Nesses seis meses são pranteados por seus familiares como se estivessem mortos, ao mesmo tempo em que passam a formar uma fraternidade com as divindades das águas, seus novos “pais”. Claro que nada disso é real, da mesma forma que não são reais os “causos” contados por esse nosso Brasil afora, tais como o do que boto rapta as moças bonitas e do mateiro que vira onça. Embora não fiquem submersos, os jovens vivem durante seis meses em algum lugar, onde são submetidos a provas violentas, dolorosas até, com uma única finalidade: crescer.
 
Atração pelo perigo:
Rituais de iniciação de todos os tipos ainda existem de montão em todos os continentes: circuncisão nas sociedades da África Ocidental, seções de tatuagens nas sociedades da Indonésia, ritos de subincisão na Austrália e por aí vai. Só que atualmente nem todos os jovens parecem aceitar completamente tais ritos, mesmo nos cantos mais longínquos do planeta. É que muitos começam a pensar em seu futuro num mundo globalizado e preferem evitar os rituais que deixam marcas visíveis que os tornariam alvo de preconceitos ou de restrições.

As modernas sociedades não fornecem mais iniciações existenciais. O contato com a natureza se dessacralizou, as viagens transformaram-se em turismo de massa e perderam suas virtudes transformadoras, as provas físicas são meramente competitivas e não mais associadas ao desenvolvimento espiritual. A verdade é que hoje vivemos espremidos entre o tempo que nos parece passar depressa demais e um futuro incerto demais. E só um presente vivido intensamente pode fazer frente às intermináveis esperas de quem vive entre a puberdade e o fim da adolescência, uma faixa etária que pelo Estatuto da Criança e do Adolescente vai dos 12 aos 19 anos, embora dê sinais de que se inicie cada vez mais cedo e se prolongue até bem mais tarde.

Sem ritos de passagem, os jovens buscam substitutivos. Alguns se apegam às tradições da vida civil, cumprindo à risca os rituais típicos dos tempos de seus bisavós, tais como a seqüência noivado – casamento com o vestuário, a pompa e a circunstância de outrora. Outros tomam o rumo oposto e se arriscam em manifestações de selvageria, mergulhando na droga, na delinqüência ou no fundamentalismo religioso. Há quem fique nas pequenas transgressões, como dirigir sem ter carteira de habilitação ou colar nas provas. Mas a atração pelo perigo às vezes ultrapassa o limite da sensatez, como manter relações sexuais sem preservativos, arriscando-se a uma doença sexualmente transmissível ou uma gravidez precoce. Por imprudência, rebeldia ou vontade de ser adulto antes do tempo, aproximadamente 693.101 adolescentes se tornaram mães no Brasil, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Na França calcula-se que dez mil garotas engravidem a cada ano, nos Estados Unidos o número chega a um milhão.

Aposta-se no risco, no frenesi de viver. Em alguns países europeus, jovens da periferia se reúnem nas noites de sábado e “se divertem” dirigindo numa rodovia, na contramão, pisando fundo no acelerador. No Brasil, os jovens de periferia “surfam” no alto dos vagões de trem ou na capota dos ônibus. Nos Estados Unidos, cerca de um milhão de adolescentes, por ano, vão para a escola armados.



O jogador Giovane exibe sua tatuagem. Ao centro, a médica Mamisa Chabula mostra o instrumento que utiliza para fazer essas circuncisões. E, à direita, meninos da etnia xhosa, na África do Sul, se preparam para um importante rito de passagem: a circuncisão.


 
Outra vertente é a dos jovens que concentram suas atenções no próprio corpo: tatuagens, piercings e outros sinais exteriores de ser parte de um grupo e de ter escolhido passar por uma dor iniciática. Mas, como essas marcas corporais dispensam a mediação de uma cerimônia e também não garantem nenhuma transformação interior do indivíduo, não refletem nada além delas mesmas. São meros adereços, permanecem no domínio da aparência, ao contrário do que acontecia há milhares de anos, quando a necessidade de marcar a pele tinha origem na submissão aos deuses, na resistência aos maus espíritos ou simplesmente na dignidade de ser um homem. O “artesanato” corporal atinge limites inimagináveis, como cortar a pele com lâmina de barbear ou cacos de vidro, fazer o possível para ficar com anorexia ou bulimia.

Sonhadores e realistas:
Para esses jovens, o próprio corpo não tem nenhum valor, principalmente valor mercantil, uma vez que o mundo do trabalho os recusa. Afinal, colocar-se em risco não tem mais nenhuma importância. Flertar com a morte ou chegar muito perto dela para nunca mais sentir medo ou então para provar um paradoxal desejo de viver.

Danças, transes, transas, vertigens, magia, jogos, cerimonias, cultos, exaltações… Todos nós temos, em nosso inconsciente coletivo, um desejo latente de festa anárquica, de bacanal, de transgressão do modelo cultural de nossas festas ocidentais, para nos soltarmos e delirarmos com os outros, numa espécie de embriaguez mística. A história nos ensina que a necessidade de euforia se situa estreitamente ligada ao desejo de religião. Mas, para quem vive no limite, qualquer meio vale para alcançar esse estado, até mesmo o ecstasy, o álcool e a maconha de fácil acesso. A cada dia aumenta o número de jovens (e os nem tão jovens) que fazem uso de drogas, tanto as “leves” – maconha, haxixe, ecstasy, até os tranqüilizantes e o álcool, legalmente aceitos pela sociedade – como as “pesadas”, dentre as quais a heroína e o crack.

Inicialmente chega-se à droga por curiosidade e por uma forma de insatisfação: a “realidade cotidiana” não se basta a si mesma, e a maneira na qual vivemos essa realidade não nos permite uma percepção dos sentidos. Porém, a utilização de um psicotrópico tem ao menos dois efeitos: a realidade cotidiana nos parecerá mais satisfatória e teremos a capacidade de elevar nosso nível de consciência a um nível que não era percebido ou compreendido, por um curto momento durante o qual nossa vida terá sentido, talvez algo não exprimível de maneira lógica, mas apercebido como convincente por estar associado a sensações intensas.

Entre nós, o fato de usar alguma substância por compensação, por que a vida não é satisfatória, coloca em evidência a primeira droga dentre todas: o sonho. O que fazemos diante de um cotidiano insatisfatório? Desde a infância, existem dois tipos de comportamento: de um lado, aqueles que preferem agir e transformar esse cotidiano fazendo esforços; de outro, os que sonham com um outro cotidiano, mas que preferem ali se refugiar inteiramente, esquecendo-se de uma realidade muito dura, onde são dominados, impotentes, infelizes.




Limões na pele: À esq., na Malásia um hindu pratica ritual de purificação costurando limões na pele. Ao centro, o grupo teatral Alquimia dos Sonhos, de Brasília, encena peça sobre uso de drogas entre os jovens. À direita, também em Brasília, jovens desmaiam numa boate de tanto beber. Uso de álcool e drogas pode esconder a falta de ritoas de passagem.


Aliás, mesmo aqueles que fazem esforços para transformar o mundo têm necessidade do sonho – ele funciona como um esboço do projeto que tentarão materializar. Esses talvez conheçam a materialização de seu sonho, e com certeza a alegria da prática e do esforço. Os outros, os que não agem, encontrarão também uma forma de gratificação na compensação interior que leva a um universo de sonhos. Mas, chegará a hora em que esse sonho não será tão forte, abrindo espaço para o uso das drogas. Algumas têm a propriedade de fazer os sonhos mais consistentes, mais intensos, mais reais do que eles são, levando o sonhador insatisfeito a aumentar suas doses.

São maiores, portanto, os riscos que correm os jovens nesses momentos verdadeiramente iniciáticos, em que procuram converter o sonho em realidade. Se o adolescente de hoje – que não está enquadrado em nenhum ritual de passagem e que sofre com o esforço de compreender o que se passa com ele – tomar alguma substância alucinógena, vai vivenciar alguma coisa duplamente xamânica. Essa substância, que tem o poder de intensificar seu sonho e de lhe dar uma realidade interior por algum tempo, faz com que ele questione os mecanismos de crença no mundo. Se isso acontece muito cedo, esse questionamento pode desmotivar completamente o indivíduo, que não se esforçará mais: ao verificar como os adultos se comportam e têm objetivos fúteis, se desmotivará a ponto de rejeitar completamente o sistema ao qual ele está sendo estimulado a adentrar.


Sentido iniciático do rito de passagem:
Chamam-se ritos de passagem as cerimônias que marcam a passagem de um indivíduo ou grupo de uma fase ou ciclo de vida para outro. Desde o início dos tempos históricos, sabe-se que todas as culturas e civilizações criaram seus próprios ritos de passagem. São exemplos de ritos de passagem o batismo e a primeira comunhão dos católicos e o bar mitzvah dos judeus. Rituais como esses ainda são praticados, mas o profundo sentido iniciático que eles encerram perdeu-se quase completamente.



Galinha viva: Em Jerusalém, durante o Yom Kippur, judeus ultraortodoxos se "purificam" com o auxílio de uma galinha viva. Segundo a crença, ao passar sobre suas cabeças o animal "absorve" os seus pecados. Chamado kaparot, esse ritual é idêntico a um outro praticado por tradições africanas e afor-brasileiras, como o candomblé.


Esses ritos servem para solenizar certos momentos da vida humana, como nascimento, casamento e morte. Provavelmente, porém, sua maior função é ajudar os jovens a superar a crise psicológica que freqüentemente acompanha a mudança de uma idade para outra – da infância para a adolescência e desta para a idade adulta.

Certas correntes da moderna psicologia consideram que a quase total ausência de ritos de passagem na sociedade contemporânea é uma das principais causas do grande número de casos de jovens despreparados preparados para as dificuldades da vida adulta, inadaptados à dura realidade do mundo e que, por essa razão, preferem existir como eternas crianças ou adolescentes.

Iniciação necessária:
Segundo o jornalista Fabrice Hervieu-Wane, que foi consultor para o Unicef na África, autor de diversos artigos sobre educação e do livro Une boussole pour la vie – Les nouveaux rites de passage (Ed. Albin Michel), “se quisermos que as novas gerações vivam em um mundo pleno de sentido, precisamos inventar novas provas para aprender a transformar o suor e as lágrimas em força de vida”.

Do ponto de vista iniciático, não existe crescimento sem crise. Diante de uma crise, podemos nos comportar apenas de duas maneiras: enfrentá-la ou ser vítima. Se não aprendemos a gerenciar a crise, precisamos passar por ela. E, através de nosso comportamento, iremos gerar crises de que temos necessidades para crescer.

Se todos concordam que é hora de rever e reabilitar os ritos de passagem que ajudariam os jovens a crescer, é hora também de arregaçar as mangas e promover um debate multidisciplinar capaz de orientar e iluminar um caminho para a criação de novos ritos. Sem nostalgia. Nosso mundo tem necessidade de ritos modernos e positivos, de cerimônias reposicionadas, originais e entusiásticas, de reencontros profundos com a morte e o renascimento simbólicos.

O que há para ler:

Nascer não basta – Iniciação e toxicodependência.
Luigi Zoja - Axis Mundi - Editora Três.

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